Pós-pandemia ou pós-capitalismo: Reflexões sobre a COVID-19 a partir do Rio de Janeiro

Artigo escrito por Tainá de Paula, arquiteta e urbanista, ativista de causas urbanistas, especialista em Patrimônio Cultural. Tainá foi uma palestrante durante o webinar “Urban Living and Covid-19: Impacts on Architecture and the Future of Cities” e, aqui, compartilha mais ideias sobre o assunto com a comunidade Swissnex. Desfrutem da leitura!

A pandemia do coronavirus desafia o pensamento e a prática da Arquitetura e do Urbanismo no sentido de sugerir novos imaginários para as cidades no plano do cuidado e prevenção com as epidemias. No Brasil, a Covid-19 veio escancarar as desigualdades sociais tão presentes nas favelas e periferia, sobretudo com a população negra que historicamente ocupa esses territórios no país. O Brasil, mais precisamente o Rio de Janeiro, é recordista, por exemplo, de casos de tuberculose na América Latina por conta de uma ausência do olhar do Estado para estas populações. 

O nosso sistema público de saúde, que, num passado recente, chegou a ser considerado uma referência mundial, já vinha, por falta de investimento, sendo pressionado por doenças como hepatite, anemia, sarampo e tuberculose, para citar apenas algumas. O grande déficit de acesso universal à água e tratamento de esgoto mostram também o grande desafio do século XXI, onde acessar água potável e tratá-la é item principal de uma agenda de combate ao coronavírus e de uma agenda de justiça sanitária.

O Brasil sudestino concentra a ampla maioria da rede e mesmo assim, apresenta descontinuidade de acesso ao saneamento básico ao longo de seu território (ver mapa acima, de 2010).

Esta e outras doenças relacionadas à falta de acesso ao saneamento básico e à precariedade habitacional, por exemplo, são responsáveis pelo alto índice de mortalidade de pessoas em vulnerabilidade social, especialmente negras/os. O cenário observado na cidade do Rio de Janeiro é um retrato das situações Brasil adentro, de falta de acesso à água, à saúde e a uma habitação digna. 

O Brasil que foi, há pouco menos de 10 anos, a sétima economia do mundo se coloca hoje como uma das nações mais desiguais do planeta, com problemas crônicos em seus territórios e equiparado, do ponto de vista numérico, aos dados de periferias dos grandes aglomerados favelizados da África subsaariana. 

No mapa acima, podemos verificar a alta concentração de renda e brancos nas áreas nobres da cidade do Rio de Janeiro que, se compararmos à distribuição de equipamentos de saúde e a toda extensão municipal, perceberemos que essa distribuição desigual de renda e raça no território constroem a desigualdade. 

Observando-se o mapa de distribuição de contágio, óbito e letalidade do Covid-19 no Rio de Janeiro, observamos que, apesar da contaminação comunitária ter se estabelecido primeiro na zona sul carioca, foram os bairros mais interiorizados, com menos renda e mais empretecidos na sua composição étnico-racial, os que tem o maior número de casos e que concentra o maior número de óbitos. Até a realização deste documento a taxa de letalidade na zona sul do Rio de Janeiro é de 5% de óbitos ao passo que em uma favela em Campo Grande esta taxa chega a 26,9% de óbitos. 

Acompanhando-se as medidas de enfrentamento, no Brasil e de outros lugares do mundo, observa-se que irregularidade de políticas de mitigação e controle da disseminação do vírus, assim como a descompatibilização de medidas. Houve ao longo da pandemia 7 decretos municipais de regras de parâmetros para o COVID-19 e 4 estaduais, com determinações urbanístico-sanitárias, desencontradas com as determinações municipais.

Nesse sentido, ações locais de gerenciamento de crise devem ser pontuadas como fundamentais para o controle do vírus nas favelas e assentamentos precários, tendo em vista a importância da governança local para a construção de uma agenda focada nas ações territoriais. 

Para este artigo comparou-se as iniciativas de Paraisópolis, Rocinha, Alemão, Xicheng, Cidade de Deus e Providência e percebeu-se como parâmetros que se repetiram nestes gabinetes de crise:

– Enfrentamento territorial ao COVID-19 e aos problemas urbanos;
– Contagem local de infectados e acompanhamento;
– Localização e suporte assistencial para os vulneráveis;
– Dados por quadra;
– Auto-organização popular;
– Financiamento privado;

Parâmetros que se repetiram em Paraisópolis e Xicheng:

– Agentes públicos de saúde;
– Articulação com espaços e equipamentos públicos (escolas, igrejas, estacionamentos e postos de saúde locais);
– Construção de gabinetes comunitários de atendimento ao público.

Nesse sentido, num cenário pós-pandemia, é urgente entendermos os principais gargalos da desigualdade urbana, construindo tecnologia social capaz de responder às injustiças que se acirrarão no futuro. A questão do acesso à moradia, o debate do acesso à terra urbanizada, uma distribuição equitativa de equipamentos e incrementos urbanos, a eliminação da expulsão urbana de pobres e negros dos territórios infraestruturados precisam figurar na agenda pós-COVID, ou não teremos aprendido com a crise médico-sanitária. 

É preciso responder à crise levantando-se questões sobre a hiperconcentração dos pobres nos centros urbanos, a construção de novos suportes ao desenvolvimento e gestão de recursos, que não degradem o meio-ambiente e preservem reservas hídricas e ambientais. É necessária uma repactuação do capital produtivo e das relações de trabalho, onde é central construir uma agenda alternativa ao capitalismo e ao próprio trabalho, à luz da sobrecarga de tarefas e da ineficiência do capital rentista de produzir uma agenda de pleno emprego e tampouco uma agenda de bem-estar social.

Com isso, é preciso se fazer a pergunta que encerra este artigo e começa uma nova questão urgente: estamos construindo uma agenda de pós-pandemia apenas ou uma agenda de pós-capitalismo? Esta é uma pergunta fundamental para o que virá.